Clarificência

"É só uma noite clara! Clara pelos olhos abertos da alma. Claridade que afeta a pele e o pensamento."

Ela não percebeu que hoje seria necessário dirigir-se ao metrô. Os ônibus não estavam trabalhando, os bondes eram velhos e cheios. Seu carro havia um bom tempo estava na garagem parado, envelhecendo, pois ela não aprendera, ainda, a dirigir. Acho que temia a ligação homem e máquina. Dessa forma, uma idéia a incomodava: tanto ela quanto ele, inevitavelmente, se enchiam de pó. Por outro lado sentia falta das caminhadas, porém seu corpo, naquele dia, não estava preparado (talvez pela falta de combustível ou por excesso de ferrugens) Então, seguiu seu caminho.

A trajetória seria longa; algumas paradas, aquele entre e sai frenético, vozes e ausência de palavras. O paradoxo do urbano - de máximos e mínimos. Gostava daqueles rostos silenciosos, eles faziam com que se lembrasse das poesias no ladrilho: letras que convergiam em música, desenhos que se tornavam filmes. Poesia que a transportava no tempo, no barulho da pressa: ir e vir, abrir e fechar, entrar e sair…

Por um segundo notou que ao longo da viagem, alguém, assim como ela, estava solto no tempo. Perdido em pensamentos. Quis estar perto, quis saber daquela vida, mas a distância do hoje, fez com que não se aproximasse. Lembrou-se que era ágil com as palavras somente em cima de uma folha de papel. Calou-se antes mesmo de dizer, mesmo tendo dentro de si um turbilhão de indagações.

Voltou-se para a viagem e percebeu sua imagem no reflexo da janela. Estava cansada, mas o brilho nos olhos refletia a alegria da alma. Sabia que aquele cansaço era externo. Era o cansaço daquilo que o mundo dá - não daquilo que a alma sente. Mas não entendia se era possível separar a alma do mundo.

Largo! Era esta a sua parada. Assim como todos à sua volta fez o percurso automático de sobe e desce de escadas, sem perceber os que estavam ao seu lado. Já era natural estar no meio da multidão. Há tempos tinha sido transformada pelas ruas, pelo concreto e pela agitação. Já não sentia a distância de casa. Não percebia nem mesmo o cheiro de terra molhada… que por vezes tinham sido seus momentos de delírio.

Estava indo ao encontro de um escritor, era seu segundo trabalho. O primeiro era um jovem poeta, com poucas publicações, mas tinha leveza e doçura em seus poemas. O lançamento ainda estava por vir, mas com boas indicações, boas críticas e previsão de um futuro enriquecedor.

A noite anterior tinha sido branca, em claro, preparando o material. Além de e-mails e telefonemas ainda não tinha encontrado com o aquele homem. Tomava conta de si a tensão do primeiro encontro - medo, insegurança, ansiedade e euforia, pois, de acordo com exigências, ela só saberia quem seria seu cliente após leitura e troca iniciais de percepções. Era como se ele quisesse compreender o universo para quem ele escrevia. Como se cada contato fosse uma coleta de informações.

Antes de entrar, recordou o trecho que a fez continuar, mesmo estando no escuro: “… tenho vínculos a desatar, caminhos a trilhar, dores a sentir, mas em mim há um amor intenso e este amor espera”. Ainda que algumas vezes sentisse em tal texto algo piegas e ridículo, sabia que era real. Feminino e necessário!
(avante)
Primeiras correções: Eder Lúcio

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